Portugal é um país muito instigante quando se fala em arquitetura. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, sua produção não faz jus à escala populacional ou territorial, e esta arte não apenas faz parte como tem raízes profundas na cultura nacional. Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
As conversas são uma oportunidade de conhecer as pessoas, os bastidores, os processos e as referências de trabalho de arquitetos de grande envergadura. Para o primeiro episódio, Sara conversa com ninguém menos que João Luís Carrilho da Graça sobre seu projeto para o Terminal de Cruzeiros em Lisboa, concluído em 2018. Leia a entrevista na íntegra ou ouça o podcast, a seguir.
Sara Nunes (Building Pictures): Sabemos que o arquitecto tem mais de 40 anos de experiência profissional a construir edifícios, a construir cidades, a dar aulas em Portugal e também fora de Portugal. Começo, portanto, por lhe perguntar: O que é que continua a mantê-lo entusiasmado para ir ao escritório, sentar-se à mesa e começar a desenhar um novo projecto?
Carrilho da Graça: Eu, como a maioria dos meus colegas e amigos, sempre tive uma determinada sensação: aquilo a que não resistimos na nossa vida é a um projecto de arquitectura. Lembro-me que se pedíssemos para fazer o que quer que fosse ao meu colega Manuel Vicente era muito difícil. Isto porque não era fácil ele organizar-se e mobilizar-se, mas se alguém lhe dissesse: “Vamos fazer um projecto em determinado local”. Ele ficava logo sorridente e ia a correr ver o sítio, falar com a pessoa em questão e começar o projecto. Os arquitectos normalmente gostam imenso de Arquitectura, o que é um pau de dois bicosporque o facto de se gostar muito de Arquitectura também traz certos desgostos quando não se consegue atingir aquilo que verdadeiramente queríamos atingir. Isso faz com que esta profissão seja muito dinâmica e exija muito de nós. Estamos sempre a tentar até à última hora fazer o melhor possível. É um desafio que temos quer no projecto, quer depois de a obra estar concluída. É um permanente desassossego. E é esse desassossego que mantém os arquitectos a quererem trabalhar até ao fim da vida. Isto, claro, enquanto tiverem energia e entusiasmo.
SN: Parece que é esse desassossego que o motiva. E percebe-se que Lisboa tem-no deixado bastante desassossegado porque trabalha muito nessa cidade, sempre com um trabalho relevante e consistente. E é, precisamente, sobre um projecto em Lisboa que vamos falar hoje. Pergunto-lhe se ainda se lembra (porque este projecto já começou há muito tempo) - Quais foram os desafios que o antigo Jardim do Tabaco e o programa do edifício do Terminal de Cruzeiros, em Lisboa, lhe colocaram no concurso, em 2010?
CG: Lembro-me bastante bem! Foi há mais de dez anos. Muitas vezes, eu digo que, em média, demoramos cerca de dez anos. E estes anos consideram o intervalo de tempo que vai desde o momento que se começa a pensar num concurso/projecto, ou, inclusive, o instante em que somos contactados até à época em que nos desligamos completamente da obra. Tenho casos piores como o Convento de Jesus de Setúbal, por exemplo. Nesse caso, o concurso ocorreu em 1998 e ainda estamos a iniciar a terceira fase. Depois existem outros que, por vezes, ainda se prolongam durante mais tempo. Mas no caso do Terminal de Cruzeiros, apesar de serem dez anos não me parece que foi assim há tanto tempo. Lembro-me bem como tudo aconteceu na altura do concurso. Já agora, vale a pena partilhar todas as etapas.
Começou, portanto, a falar-se do concurso. Um dia fui fazer assistência à obra do Castelo de S. Jorge, ou seja uma intervenção no Castelo. E depois decidi descer a pé até ao sítio onde hoje está o Terminal de Cruzeiros. Pelo caminho, passei pelas Portas do Sol, fixei-me naquele miradouro, olhei para o local onde era a doca do Jardim de Tabaco e pensei que estava num ponto destacado, naquela espécie de anfiteatro, a olhar para o rio. Via a doca e imaginei, imediatamente, que seria interessante que o edifício quase ecoasse a partir do anfiteatro e criasse uma relação de diálogo arquitectónico e urbano. Ou seja, a minha ideia era criar um edifício que tivesse um sentido de base, de concha ou de anfiteatro onde eu me encontrava. Depois desci, fui ver o local e mais tarde comecei o concurso. Quando se deu início ao concurso, não sei se se lembra (porque já foi há bastante tempo), mas antes deste concurso houve um projecto feito pela Administração do Porto de Lisboa (APL) para criar o Terminal de Cruzeiros próximo do Terreiro do Paço, mas tinha um programa relativamente pesado. Tratava-se de uma espécie de grande centro comercial com escritórios que apresentavam um conjunto de valências. Portanto, tratava-se de um volume muito grande, que criava uma grande perturbação porque cortava as vistas todas da cidade que já estavam estabelecidas, em relação ao rio. Tudo isso gerou polémica e apareceram imagens dos jornais e ninguém gostava.
SN: Sim, lembro-me perfeitamente de ter saído essa notícia com imagens do projecto.
CG: Quando pensei fazer o projecto, pensei que uma das coisas importantes era que o edifício tivesse uma altura mínima, cumprindo naturalmente o programa. Ou seja, queria que fosse relativamente baixo e que estivesse de tal maneira colocado que não cortasse as vistas da cidade em relação ao rio, que é uma coisa que toda a gente adora. Esse foi um ponto que penso que foi bem conseguido porque depois verifiquei que, entre os projectos que surgiram no concurso, este era o mais pequeno. Apesar de responder cabalmente a todos os detalhes do programa não se entusiasmava a fazer volumes, ou formas só porque o terreno ali era aparentemente plano. Portanto, o projecto apresentado foi uma primeira aproximação. Depois há um aspecto muito importante que foi o facto de eu me ter colocado, como habitualmente me coloco, do ponto de vista da cidade.
Explicando de outra forma, o programa é o Terminal de Cruzeiros e sabemos que, como tal, tem de funcionar perfeitamente, tem de receber os navios, as pessoas que vêm nos navios, encaminhá-las até aos navios no sentido inverso, resolver todas essas questões e, simultaneamente, dar uma contrapartida à cidade, até porque é uma zona muito central e o trânsito vai ser sempre bastante afectado por todo este movimento. Questionei-me, então, que contrapartida seria essa. A partir desse ponto, surgiu a ideia de criar um parque verde ribeirinho, que foi desenvolvido em conjunto com o arquitecto paisagista João Gomes da Silva, com o qual gosto muito de trabalhar e penso que fez um trabalho óptimo neste contexto. Portanto, a ideia ali passava por criar um espaço verde público. Se olharmos para uma fotografia aérea da zona de Alfama, percebemos que o local, apesar de ser lindíssimo, tem raríssimas árvores. Logo, a presença de árvores e de um espaço verde, onde as pessoas pudessem ir, parecia-me extremamente importante. Esse foi um ponto fundamental.
Outro ponto de partida também muito interessante foi que – contrariamente ao que estava a ser feito, que implicava aterrar a doca e a doca desapareceria da nossa memória, passando a tratar-se de um terreno plano, sem qualquer referência à doca – o projecto que eu apresentei pressuponha que todos os elementos (desde o parque de estacionamento, o descoberto com árvores um pouco aterrado, o parque aberto, aquele plano de água e, claro, o próprio edifício) estariam inseridos dentro do rectângulo que correspondia à doca do Jardim do Tabaco. E se baixarmos um pouco o nível dentro da doca (que foi o que fizemos) podemos ver os antigos muros. Alguns desses muros até tiveram de ser restaurados, outros estavam em bom estado.
Portanto, temos assim uma espécie de referência como se se tratasse quase da arte do campo. Esse campo pode ser a folha de papel onde se vai desenhar, ou o ponto de partida para uma intervenção. O próprio rectângulo foi muito importante para ajudar a manter a memória e a dar continuidade à intervenção que nós fomos fazendo.
O terceiro ponto, que me pareceu sempre fundamental: é a possibilidade de tornar público o acesso à cobertura. Imaginemos, se formos à cobertura temos uma vista aberta sob o Mar da Palha. O estuário do rio Tejo tem essa bacia extensa que eu gosto imenso e que provavelmente tem este nome porque quer ao nascer do sol, quer ao pôr-do-sol fica dourada. Portanto, temos a vista para o Mar da Palha e temos vista para o tal anfiteatro da cidade que é, em grosso modo, a Alfama com um Panteão Nacional (uma parte da cidade extremamente bela e interessante). E pensei que não só o parque poderia ser público (como é) povoado por restaurantes e pontos de atracção que estabilizassem a utilização desse espaço urbano, mas também daria acesso à cobertura. Tudo isso é feito em nome da cidade.
Essa é, afinal, a contrapartida. O terminal é um edifício que estava definido que se iria instalar ali e que seria naturalmente possível, mas essa construção pede coisas às pessoas da cidade e atravanca o trânsito, criando uma certa perturbação. Então, passamos a ter um parque, um miradouro em cima do edifício e os muros da doca. Convém referir que nós voltámos a escavar um pouco a doca para conseguirmos construir dentro daquela marca, que são os muros da antiga doca.
SN: Parece que há dois pontos importantes neste projecto. Num deles percebemos que o arquitecto tentou resolver a questão funcional do terminal e no outro ponto houve uma preocupação muito grande com esta relação que o edifício tem com a cidade. A responsabilidade de dar à cidade, por um lado, a vista para o rio e, por outro lado, o jardim. Portanto, há uma preocupação com as pessoas da cidade.
CG: Sabe que eu normalmente penso sempre que o que é importante na acção e na actividade dos arquitectos, sobretudo quando se trata de um concurso público internacional como este, é pensar que o que se vai introduzir ali melhora a cidade. Ou seja, não é um peso morto, nem um problema, mas sim mais um elemento que torna mais atraente, mais humana e mais interessante a cidade de Lisboa.
O arquitecto e amigo Eduardo Souto de Moura explica isto de uma forma divertida. Numa das suas obras – por exemplo, o Estádio de Braga que eu gosto imenso – ele referia que quando ia a caminho da obra, tapava a obra com a mão, depois tirava a mão e chegava à conclusão que aquela paisagem ficava melhor com o edifício.
Contou-me ainda que quando vinha do aeroporto, deslocava-se do Porto e depois ia de táxi por ali... Fazia o mesmo exercício, tapava e depois tirava e chegava sempre a essa conclusão. É interessante e é este espírito que eu sempre tenho. Ou seja, o de tentar que as intervenções dos arquitectos contribuam para que a cidade seja melhor para toda a gente e não só para quem está a financiar e a construir um certo programa.
SN: Uma busca de melhorar com a Arquitectura a cidade e a vida das pessoas.
CG: Exactamente.
SN: Perguntava-lhe agora, arquitecto, já alguma vez viajou de cruzeiro?
CG: Não. Por acaso, quando tinha aproximadamente 20 anos, um pouco a seguir ao 25 de Abril, fiz uma viagem de automóvel, desde Lisboa até Londres. Fiz a travessia do Canal da Mancha através de um ferryboat e depois desloquei-me com o carro com a minha mulher e com um casal de amigos nossos. Íamos para Bilbao e aí havia um ambiente mais ou menos de cruzeiro.
Era um barco relativamente grande, mas nós estávamos num ambiente de cruzeiro. Esta foi a experiência mais semelhante que eu tive com a viagem de cruzeiro. Devo ainda dizer que gosto imenso de barcos, mas aquela ideia de cruzeiros de massas não me atrai minimamente. Um cruzeiro num barco gigantesco, que chega a levar mil pessoas a bordo, entre tripulantes e passageiros. No entanto, não me parece nada aliciante aquela massificação. Naturalmente o faria se fosse uma viagem de barco de cruzeiro, num barco pequeno, em determinadas condições. Com um grupo de amigos pode ser fantástico, mas aquela massificação incomoda-me muito e, portanto, não tenho a certeza se me irei aventurar num cruzeiro desses.
SN: Estou a perguntar-lhe isto por causa das imagens e das fotografias. Eu também nunca tive oportunidade de ver o edifício de barco, apenas de terra, mas vi fotografias muito bonitas na relação que o edifício tem com a cidade. E a verdade é que o edifício é, para quem chega de cruzeiro, a porta de entrada na cidade e daí a importância deste edifício na própria cidade.
CG: Penso que isso foi sempre uma preocupação minha. Ao longo do tempo, fiz muitas reflexões sobre isso, fotomontagens e mesmo fotografias de concurso. O que é um facto é que, quando o navio de cruzeiros chega ao terminal, as pessoas já se encontram espalhadas por todo o lado, deslocam-se para o exterior do edifício a observar a cidade – isto é, desde que não esteja um tempo horroroso, mas nessa altura também não há cruzeiros. Nesse instante, têm os ‘olhos cheios’ da cidade de Lisboa. Uma vez chegados ao terminal, atravessam a passerelle, entram no edifício e o edifício dá oportunidade de ver a cidade numa perspectiva diferente e encenada de uma outra maneira. Apesar de ter consciência desse carácter de o edifício ser uma porta de entrada na cidade nunca o assumi literalmente. Nunca pensei que serviria como uma porta que estava fechada e que se iria abrir, ou algo desse género.
O projecto surgiu com uma certa naturalidade, mas se quer que lhe diga a experiência que as pessoas terão nos cruzeiros é muito estandardizada e massificada. E eu penso que a possibilidade de chegar a uma cidade maravilhosa como Lisboa é certamente um acontecimento na vida de toda a gente, mas não é só a história do terminal que vai marcar nesse sentido.
SN: Faz parte do conjunto, não é?
CG: Exacto.
SN: Uma das coisas muito especiais neste edifício, que já acabou por falar, mas eu gostava que aprofundasse um pouco era sobre esta cobertura que permite, de facto, ter uma relação muito especial, quer com o rio, quer com a cidade. É quase um origami que se levanta do chão e que nos permite ver a cidade de Lisboa de uma forma diferente.
CG: O que eu penso que resultou muito bem na cobertura é que nós chegamos ao nível do piso superior de um edifício (que é onde se processam as partidas) e, chegados aí, entramos numa espécie de pátio que tem um espaço de plano aberto e depois uma grande rampa com as escadas ao lado para funcionar como se fosse um anfiteatro exterior. Portanto, pode haver ali espetáculos, concertos e o que eu penso que é relativamente interessante nesse ponto não é só esta possibilidade, mas também porque nós subimos a rampa quase como se estivéssemos a percorrer um espaço natural. Ou seja, quase como se estivéssemos na natureza a subir uma colina. À medida que vamos subindo começamos a redescobrir a cidade, o Panteão de Alfama e todos aqueles edifícios fantásticos e, por outro lado, também o Mar da Palha. Este primeiro ponto de possível paragem, que é o anfiteatro natural, e depois esta sucessão de pontos de vista sob a cidade altera realmente muito a nossa percepção em relação à cidade.
Depois há o edifício em si – isto percebe-se nas fotografias aéreas e naturalmente também quando se visita – apesar de ter vários tipos de revestimento, equipamentos e materializações existe sempre um tom semelhante ao da pedra lioz, que é um calcário com o qual foi construído, por exemplo, o Panteão de Alfama e muitos outros edifícios. Existe assim uma relação com a pedra, através da cor e do aspecto, que penso que resultou bastante bem.
Quando estava a desenvolver o projecto e me encontrava com os engenheiros de estrutura, houve um certo ponto em que nos disseram que não poderíamos fazer os alçados e o exterior do edifício em betão. Questionei o porquê e eles explicaram que a capacidade de suporte das estacas onde todo o edifício se apoia e as camadas onde se podem apoiar as cargas do edifício estava a cerca de 20 a 25 metros de profundidade. Portanto, nós tínhamos estacas muito profundas que iam até essa profundidade e as cargas passíveis de serem suportadas estavam no limite e não podiam ter muitas mais toneladas em cima.
Tivemos de fazer a alçada ou a fachada exterior, quer de um lado quer do outro, com materiais aligeirados. Isto é, com placas quase como se fossem gesso acartonado mas com outra constituição. Confesso que não gostava nada dessa solução. Então comecei à procura de uma hipótese alternativa. Lembrei-me de tentar fazer um betão que ao mesmo tempo fosse estrutural, mas que tivesse uma massa muito inferior. Desenvolvi isso com a Secil, a Amorim, a ITeCons em Coimbra, que fez um trabalho óptimo. Desenvolvemos este betão com a cortiça que é algo bastante inovador porque, pela primeira vez, temos um material que é estrutural, mas que tem uma massa muito inferior à do betão corrente. Isso permitiu fazer dois alçados muito mais leves do que seriam se fossem em betão e sem ser tão frágil. Penso que teria sido difícil trabalhar com materiais aligeirados em algo desta natureza. O que eu pretendia era que o edifício tivesse um sentido mais monomatérico, para além de ser monocromático, dando a entender que fora construído com o mesmo material e penso que isso foi conseguido.
SN: É interessante porque eu, pelo menos, não imaginaria à partida que o betão e a cortiça combinariam em simultâneo.
CG: Também estava com medo, mas agora já passaram alguns anos e está a comportar-se muito bem. Já não é a primeira vez que eu tenho um certo arrojo em relação à utilização de materiais, mas posso dizer que tem corrido bastante bem. Digamos que a primeira vez, assim de uma forma mais visível, foi com o Pavilhão do Conhecimento dos Mares da Expo’98, que contruí com betão branco (que não é bem branco, mas é de uma cor clara). Um edifício daquela dimensão e com aquelas características nunca tinha sido construído certamente em Portugal e nem havia muitos exemplos. Na altura, até houve pessoas que comentaram que era um pouco temerário estar a fazer uma aposta daquelas. O que é certo é que conseguimos antecipar a finalização do edifício e conseguimos cumprir os custos. Algo que naquele período da Expo era quase caso único e toda a gente ficou muito admirada. A Secil apoiou de uma forma extraordinária, fizeram uma espécie de uma operação militar com policiamento e corredores de passagem.
SN: Isto no sentido de segurança?
CG: Não, não. Isto no sentido de se poder fazer a betonagem sempre contínua e sem ser interrompida pelo trânsito porque tinham de ser feitas camadas de 55 cm e se houvesse algum erro e não tivesse aquela sequência, o timing não seria cumprido e apareceriam defeitos no betão. Havia um corredor delicado e camiões que estavam sempre a deixar passar para cá e para lá, fazendo a betonagem quase em sentido contínuo. Aquilo foi feito num prazo de tempo curtíssimo. E, na realidade, se hoje lá formos há muita coisa que eu gostaria de restaurar e melhorar, mas o edifício viveu estes anos todos quase sem mazelas e sem defeitos. Foi extraordinário.
Foi, de facto, uma aposta. Lembro-me de fazer a primeira experiência e os resultados eram catastróficos, mas depois fomos melhorando até conseguirmos chegar ao resultado final que foi bastante positivo. Aqui no terminal foi uma aventura semelhante. Algumas das pessoas eram as mesmas, nomeadamente a engenheira Ângela Nunes da Secil que já me tinha apoiado no Pavilhão do Conhecimento dos Mares e também me apoiou no Terminal de Cruzeiros. O director da empresa de construção, que fez o Pavilhão do Conhecimento, estava agora do lado do dono da obra no Terminal de Cruzeiros e era o que dirigia a fiscalização e o controlo de toda aquela operação. Ou seja, também se tratava da mesma pessoa, que era o engenheiro Ricardo Vidigal. E portanto isto são apostas muito fortes e arriscadas.
No caso da junção do betão com a cortiça também havia uma incógnita. Felizmente, tivemos o apoio de técnicos e instituições bastante experientes que me ajudaram e que contribuíram para que fosse um êxito quer num edifício, quer no outro.
SN: Foi um verdadeiro trabalho de equipa!
CG: Exactamente.
SN: O concurso foi em 2010, depois o edifício ficou pronto e a funcionar em 2017. Numa entrevista, em 2019, dizia que apesar de o edifício ter sido inaugurado e estar a funcionar ainda não estava completo. Não sei se já sente que está completo. Caso não sinta, o que pensa que faltava?
CG: Na altura, o que me parecia que faltava, fundamentalmente, era a possibilidade de o público ter acesso à cobertura, de haver pelo meio uma cafetaria e outros detalhes mais ou menos funcionais do que eu teria imaginado que seria fundamental, desde que fiz o concurso. Hoje a situação está um pouco mais complicada porque, desde que se iniciou a pandemia, os cruzeiros deixaram de chegar e, portanto, neste momento o edifício encontra-se com escassa actividade.
SN: A pandemia mudou a função deste edifício.
CG: Quer dizer, que eu saiba ele ainda não mudou, mas encontra-se expectante em relação ao futuro e ainda não se sabe o que vai suceder. Este tipo de funcionamento de cruzeiros sofreu um rude golpe e não sei como é que se vai recompor. Vamos ver...
SN: Recuando um pouco e voltando a pegar num tema que falámos no início da nossa conversa quando abordámos o tempo que se demora a fazer arquitectura. Por que se demora o tempo que se demora a construir um edifício e, por outro lado, o que estão as nossas cidades a perder com estes processos demorados de construção?
CG: A realidade é que, por exemplo, a obra do Terminal de Cruzeiros terá demorado mais ou menos o tempo que se previa que demoraria. Foram cerca de dois anos. Não é assim tanto. Só que quando o concurso foi realizado, em 2010, a expectativa dos organizadores era que, desde o momento em que o projecto ganhasse o concurso até a obra se encontrar concluída, demorar-se-ia entre dois a três anos. Ou seja, seria em 2012 ou 2013 e aí já teríamos o Terminal de Cruzeiros a funcionar. Só que 2010 foi o momento da crise, tinha havido a crise dos bancos e essas confusões todas, que começaram em 2009. Em 2010, quando eu pensava que estava a começar um trabalho com a Administração do Porto de Lisboa (APL) — que toda a gente considerava uma entidade com muitos recursos financeiros e com todas as possibilidades — não pude avançar porque afinal deixou de ser possível, pois naquele momento já não era a entidade sólida que outrora foi. Tinham imensas dívidas porque fizeram uma série de investimentos, que naturalmente eram interessantes, mas bastante grandes.
Por exemplo, só a preparação daquele cais para depois vir a realizar o Terminal de Cruzeiros, foi um investimento na ordem dos 50 milhões de euros. Na altura, o investimento estava estimado entre 15 a 20 milhões. Mesmo assim, a APL não conseguiu assumir esse investimento e teve de fazer um concurso para que investidores privados (que são empresas interessadas nesta actividade dos cruzeiros) pudessem assumir de forma privada a construção, estabelecendo uma relação contratual com a APL. Foi o que veio a suceder, só que todos estes processos acabaram por demorar anos. Portanto, estivemos a desenvolver o projecto, a APL andou à procura de meios para o realizar e tudo isto implicou tempo mas, quando a obra começou, acabou por acontecer relativamente rápido e correu razoavelmente bem. Só que o tempo que habitualmente se perde é mais um tempo da organização, das condições para que se possa construir porque quer o tempo para os construtores, quer o tempo para os arquitectos e para a equipa projectista é sempre relativamente limitado e normalmente cumprimos bastante bem esses prazos. As decisões é que são muito complexas.
SN: Tem ideia de quantas pessoas é que estiveram envolvidas neste processo? Isto também para as pessoas perceberem as pessoas que são necessárias para construir o terminal.
CG: Do projecto, ou globalmente?
SN: Sim, do projecto.
CG: Actualmente no atelier trabalham cerca de 20 pessoas. Depois temos uma série de equipas de Engenharia como o caso de uma equipa de Engenharia no Porto, que fez um trabalho excelente e que conta com dezenas de pessoas a trabalhar. No projecto, especificamente, trabalharam entre dez a 15 pessoas. Já na obra trabalham imensas pessoas como os construtores (no caso a Alves Ribeiro), os subempreiteiros, entre outros. Poderá ter havido momentos com 100 ou 150 pessoas, em simultâneo, na obra.
SN: São bastantes!
CG: É verdade!
SN: Arquitecto, termino com uma última pergunta: O que é que a arquitectura lhe ensinou sobre a cidade de Lisboa?
CG: Desde o princípio que sempre gostei muito de um tema que vou tentar explicar, que tem a ver com essa relação entre o território, a topografia e a paisagem. Vamos supor que a cidade de Lisboa estava a começar e, portanto, havia uma parte do território que não era renovada. Tínhamos o rio, estávamos junto à foz e havia a colina do castelo. Recorrendo a plantas antigas e a certas regras de interpretação, eu gosto de perceber como é que a cidade se foi desenvolvendo ao longo do tempo, no decorrer dos séculos.
Tudo isto inclui temas muito interessantes: de um lado, pode-se tentar compreender como é que entravam os produtos alimentares verdes, que provavelmente vinham da zona mais saloia; por outro, existia o gado que se deslocava do Ribatejo e entrava em direcção ao Campo de Santana; ou, ainda, como entrava a madeira que vinha do pinhal de Leiria e da região Norte. Havia uma série de linhas de penetração na cidade que ficam historicamente marcadas e constituídas quase como se de uma certa especialização se tratasse. Por exemplo, na altura em que o gado que se deslocava do Ribatejo até ao Campo de Santana, existia aí uma praça de touros e ao pé um matadouro. Mais tarde, a linha de entrada do gado recuou para Picoas, onde também houve um matadouro, que penso que chegou até ao século passado.
Portanto, há linhas de entrada na cidade que tinham como foco ou o gado, ou a madeira, ou os alimentos... Essas linhas iam percorrendo a topografia e a organização da cidade. Isto é difícil de explicar sem recorrermos às plantas antigas, mas é isso que me interessa e, portanto, os projectos de arquitectura constroem-se sempre num contexto dentro de outro contexto, que é ao mesmo tempo territorial, topográfico, paisagístico e urbano. No fundo, tudo tem de dialogar com essas diversas componentes.
SN: E deixam marcas que contam histórias, não é?
CG: Sim, penso que sim!
A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.